STF estabelece que o Artigo 19 do Marco Civil da Internet é parcialmente inconstitucional, criando um novo regime de responsabilidade civil
Em resumo
O Supremo Tribunal Federal (“STF”) decidiu, por maioria, pela inconstitucionalidade parcial do Artigo 19 do Marco Civil da Internet (“MCI” – Lei nº 12.965/2014), que, como regra geral, condicionava a responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet por conteúdo de terceiros ao descumprimento de ordem judicial prévia. De acordo com a maioria do STF, passam a existir diferentes regimes de responsabilidade aplicáveis aos provedores de aplicações de internet, a depender do tipo de conteúdo e do grau de envolvimento do provedor. A decisão também estabelece um “dever de cuidado” em relação às falhas sistêmicas por parte dos provedores de aplicações de internet para determinados tipos de conteúdo, além de uma ampliação significativa da responsabilidade sob o regime de “notificação e retirada” (notice and takedown).
Mais detalhes
Em 26 de junho, o STF concluiu o julgamento de dois casos paradigmas que tratavam da responsabilidade civil de provedores de aplicações de internet por conteúdo gerado por terceiros. O primeiro caso (“Tema 987”), originado do Recurso Extraordinário nº 1.037.396, questionava a constitucionalidade do Artigo 19 do MCI, que exige ordem judicial prévia para que o provedor seja responsabilizado pela não remoção de determinado conteúdo de terceiro. O segundo caso (“Tema 533”), originado do Recurso Extraordinário nº 1.057.258 – que envolvia fatos ocorridos antes da entrada em vigor do MCI – discutia a possibilidade de responsabilização de provedores de aplicações de internet e a necessidade de ordem judicial para remoção de conteúdo ilícito. Por 8 votos a 3, o STF declarou a inconstitucionalidade parcial do Artigo 19 do MCI, com os votos divergentes dos Ministros André Mendonça, Edson Fachin e Nunes Marques, que defenderam a plena constitucionalidade do dispositivo.
Com essa decisão, o STF estabeleceu que a garantia prevista no Artigo 19 (que exige o descumprimento de ordem judicial como condição para responsabilização dos provedores) permanece aplicável apenas em casos específicos, como crimes contra a honra. Para outros tipos de conteúdo gerado por terceiros, o regime passa a ser de “notificação e retirada”, segundo o qual os provedores são responsabilizados quando deixam de remover determinado conteúdo após o recebimento de notificação extrajudicial da parte prejudicada ou de seu representante. Esse regime já era previsto no Artigo 21 do MCI, anteriormente aplicável a conteúdos envolvendo nudez ou atos sexuais de caráter privado. O regime de notificação e retirada passa agora a ser a regra mais amplamente aplicável à responsabilidade civil dos provedores por conteúdos, atos e crimes ilícitos cometidos por terceiros, incluindo situações envolvendo contas inautênticas ou replicações sucessivas de conteúdo já declarado ilícito. Nesses casos, a responsabilização dependerá da constatação de negligência do provedor ao não agir após a notificação.
O STF também criou um padrão distinto de responsabilidade e estabeleceu hipóteses em que a negligência do provedor será presumida, como nos casos de conteúdo ilícito promovido por meio de anúncios pagos ou disseminado por redes artificiais (bots ou contas automatizadas). Nessas situações, a responsabilidade do provedor poderá surgir mesmo sem notificação prévia, salvo se este comprovar que agiu com diligência e dentro de prazo razoável para remover o conteúdo. Em casos de circulação massiva de conteúdo ilícito grave – como crimes contra a democracia, terrorismo, incitação ao suicídio ou automutilação, discurso de ódio, violência contra a mulher, pornografia infantil e tráfico de pessoas – a falha na remoção poderá configurar falha sistêmica, gerando responsabilidade do provedor independentemente de notificação, com base na violação do dever de cuidado. Caso o provedor comprove que tal conteúdo é uma exceção em seus serviços, aplicar-se-á o regime de notificação e retirada. O provedor também poderá demonstrar que não foi negligente ao comprovar o uso de tecnologia de ponta para prevenir e remover os tipos de conteúdo mencionados. Ademais, se o provedor remover o conteúdo e, posteriormente, uma decisão judicial considerá-lo lícito, não haverá dever de indenizar o autor do conteúdo.
Adicionalmente, o STF determinou que os provedores de aplicações de internet que operam no Brasil devem possuir escritório e representante no país. Esse representante deve ter poderes para responder judicial e administrativamente, fornecer informações às autoridades competentes e cumprir determinações legais e judiciais. Os provedores também deverão adotar autorregulação que obrigatoriamente aborde os seguintes temas: sistema de notificação, devido processo legal e relatórios anuais de transparência relacionados a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos.
A decisão terá efeitos apenas prospectivos, resguardando decisões transitadas em julgado, e foi acompanhada de um apelo ao Congresso Nacional para atualizar o marco legal vigente, suprindo as lacunas identificadas.
As mudanças terão impacto significativo nas atividades dos provedores de aplicações de internet no Brasil.