Por Renata Amaral e Caroline Gonçalves, sócia e associada dos grupos de Direito do Consumidor, Meio Ambiente e Mudanças Climáticas de Trench Rossi Watanabe, respectivamente
O impacto e as consequências jurídicas da Covid-19 ainda estão em torno de grandes incertezas, principalmente no que diz respeito às relações de consumo que estão sendo diretamente afetadas nesse momento. Nessa fase de insegurança e dúvidas, os consumidores, conjuntamente com os fornecedores, precisam agir com boa-fé, prudência, razoabilidade, cautela e flexibilidade, sempre respeitando os limites previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Tendo isso em mente, o presente artigo foi elaborado com o intuito de apresentar a orientação das autoridades de defesa do consumidor para o presente momento, reforçar o que o ordenamento jurídico brasileiro já nos traz quanto ao direito à informação, responsabilidade dos fornecedores, cancelamentos e reagendamentos, práticas abusivas, além de diretrizes que estão sendo aplicadas para setores específicos da indústria e boas práticas.
1. Direito à informação
Os desdobramentos advindos da Covid-19 nas relações de consumo precisam ter como base o direito à informação. É preciso que os fornecedores apresentem informações claras e precisas aos consumidores sobre as medidas que estão sendo adotadas em relação às suas atividades, seja nas alterações no fornecimento de produtos ou prestação de serviços, para ajudar na tomada de decisão nesse momento de incertezas e melhor direcionamento sobre como proceder com relação aos contratos atualmente vigentes.
Além
desse princípio já ser previsto no Código de Defesa do Consumidor
(“CDC”) [1]
como direito básico do consumidor[2],
é nesse sentido também a recomendação da Secretaria Nacional do
Consumidor (SENACON), que por meio de Nota Técnica Interministerial nº
2/2020[3],
emitida em 06 de março de 2020, expressou ser “dever do fornecedor nas
relações de consumo manter o consumidor informado permanentemente e de forma
adequada sobre todos os aspectos da relação“, assegurando ao consumidor, assim, que possa fazer escolhas
conscientes.
2. Responsabilidade do Fornecedor
De acordo com o CDC, a responsabilidade do
fornecedor é objetiva e solidária entre todos os participantes da cadeia de
fornecimento, ou seja, não é preciso que o consumidor demonstre a culpa do
fornecedor para que este seja responsabilizado.
No entanto, entendemos que existe possibilidade de os tribunais brasileiros caracterizarem a Covid-19 como caso fortuito ou força maior e, nesse cenário, entenderem que os fornecedores não serão responsáveis por eventuais prejuízos e danos sofridos pelos consumidores decorrentes do contexto da Covid-19. De toda forma, a adoção pelos fornecedores de medidas proativas, mitigadoras e preventivas certamente serão avaliadas de forma positiva pelos tribunais.
Porém, é preciso ressaltar que o atual cenário não
tem precedentes. Mesmo com a análise de julgados anteriores, não é possível
afirmar qual será o posicionamento dos tribunais considerando a gravidade e
atipicidades da situação.
3. Práticas abusivas
O CDC estabelece que é considerada como prática abusiva o aumento elevado e sem justa causa do preço de produtos ou serviços. Nesse contexto, tem-se discutido em que medida o aumento do preço de produtos essenciais para o combate à Covid-19 ou demais produtos pode ser considerada uma prática abusiva, além dos aspectos concorrenciais.
Diante desse cenário, diversas autoridades de defesa
do consumidor estão realizando operações de fiscalização e procedendo com a
aplicação de multas em estabelecimentos comerciais por alegada violação ao CDC
relativo ao aumento abusivo de preços.
A Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (“Câmara-e.net)” e a SENACON lançaram a campanha “Juntos Contra Ofertas Abusivas”, que se trata de canal de denúncias para que consumidores possam apontar preços abusivos na venda de produtos essenciais à prevenção da Covid-19. Além disso, empresas do comércio eletrônico têm adotado boas práticas com o objetivo de combater essas questões, mediante remoção de usuários que violam as regras das plataformas ou sua conscientização.
A SENACON publicou, ainda, nova Nota Técnica[4] com orientações para análise pelos órgãos de defesa do consumidor de eventual abusividade na elevação dos preços dos diversos produtos e serviços que podem ser afetados em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19). A Nota Técnica aborda tanto a regra do CDC em relação ao aumento sem justa causa de preços, assim como a autonomia dos fornecedores para alterar os preços cobrados pelos seus produtos e serviços pautados no princípio da livre iniciativa. A autoridade orienta que os órgãos que vierem a analisar eventual abusividade na elevação dos preços de produtos observem os seguintes requisitos:
- Identificação do produto que
se quer verificar abusividade;
- das empresas que atuam
concorrencialmente nesse mercado;
- e da cadeia produtiva, incluindo
a matéria-prima do produto;
- Solicitação notas fiscais de
compra e de venda com uma série histórica confiável, sendo recomendável ao
menos uma série de 03 meses (90 dias);
- Identificação da
racionalidade econômica no aumento de preços ou se ele deriva pura e
simplesmente de oportunismo do empresário;
4. Cancelamentos e Reagendamentos
4.1. Orientações gerais
Em relação aos cancelamentos e reagendamentos, deve
ser observado o disposto no contrato, inclusive em relação à suspensão das
atividades e possibilidade de remarcação dos serviços para um momento futuro. É
importante que consumidores e fornecedores busquem a negociação de alternativas
que se adequem à realidade de ambos como, por exemplo, compensações de aulas no
futuro ou renegociação dos prazos para entrega de um produto, buscando a
manutenção do vínculo contratual.
4.2. Setor de Turismo
Especificamente para o setor de turismo, algumas
orientações de autoridades federais e estaduais já foram publicadas.
No âmbito federal, conforme Nota Técnica
Interministerial emitida para este segmento, consumidores e fornecedores devem buscar
a negociação por exemplo, com o agendamento novos prazos ou novas datas para
execução do contrato após o momento de crise, devendo o reembolso ser a última
opção, já que poderá gerar impactos no médio e longo prazo para a sociedade
como um todo.
Em 19 de março de 2020, foi publicada a Medida Provisória nº 925/2020 que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da Covid-19. De acordo com essa Medida Provisória, o prazo para o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de 12 (doze) meses, e os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado. Essas regras se aplicam para todos os contratos de transportes aéreo firmados até 31 de dezembro de 2020.
Autoridades no âmbito estadual emitiram algumas
orientações específicas para o setor. A Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado de São Paulo adota as seguintes orientações: “O consumidor não é obrigado a expor sua saúde a riscos viajando para
destinos onde poderá contrair o coronavírus, podendo optar por uma das alternativas:
postergar a viagem para data futura; viajar para outro destino de mesmo valor;
ou ainda obter a restituição do valor já pago. Outras possibilidades podem ser
negociadas com a empresa, desde que seja uma alternativa que não prejudique o
consumidor e com a qual ele esteja de acordo. Caso o consumidor se sinta
prejudicado em razão da postura adotada pela empresa, ele pode procurar o
Procon-SP, que irá intermediar a negociação para tentar compor um acordo com a
empresa“.
O PROCON Estadual de Minas Gerais, órgão vinculado ao Ministério Público de Minas
Gerais, orienta que “os consumidores
com viagem marcada para países com a presença do Coronavírus (Covid-19) que as
companhias aéreas ou agências de turismo devem reagendar ou cancelar as
passagens e pacotes sem cobrança de multa ou taxa de remarcação. A orientação é
válida para destinos com casos confirmados do Coronavírus, conforme dados
divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para reagendamentos, a
tarifa poderá ser somente atualizada, de acordo com os preços praticados no
momento. Na impossibilidade de adiar a viagem, o consumidor deverá receber a
devolução integral da quantia já paga“.
É no mesmo tom a recomendação de outros stakeholders, como por exemplo, o PROCON BRASIL. Em nota emitida em 27 de
fevereiro, a associação recomenda que “Nos
casos em que a viagem já tiver sido adquirida, e for possível o seu adiamento,
deverá solicitar ao fornecedor junto a qual realizou a compra ou contratação,
sem pagamento de multas ou taxas de remarcação, em decorrência do justo e
fundado motivo de saúde pública, admitida a cobrança da diferença do valor de
tarifa, salvo casos de abuso do poder econômico e de sem que com isso seja
forçado a nenhum tipo de fidelização obrigatória ou imposta“.
Ainda, o Ministério Público Federal recomendou à Agência Nacional de Aviação Civil (“ANAC”) que publique ato normativo que assegure aos consumidores a possibilidade de cancelar, sem ônus, passagens aéreas nacionais e internacionais para destinos atingidos pelo novo coronavírus (Covid-19). De acordo com o entendimento do MPF, a cobrança de taxas e multas em situações de emergência mundial em saúde é prática abusiva e proibida pelo Código de Defesa do Consumidor.
5. Artigo 399 do Código Civil
De acordo com o artigo 339, do Código Civil
Brasileiro, “o devedor em mora
responde pela impossibilidade de prestação, embora essa impossibilidade resulte
de caso fortuito ou se força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se
provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviveria ainda quando a obrigação
fosse oportunamente desempenhada“.
Primeiramente, é importante esclarecer que, apesar de
as relações de consumo serem majoritariamente reguladas pelo CDC, existem
situações em que as regras do Código Civil também se aplicam, como pode ser o
caso da situação acima.
A regra geral é a de que todos os riscos devem ser
suportados pelo devedor com obrigações em atraso, inclusive em situações de
caso fortuito ou de força maior. O artigo acima vem atenuar essa regra,
admitindo que haverá a exclusão da responsabilidade apenas nas hipóteses em que
o devedor provar (i) inexistência de culpa quanto ao atraso na prestação da
obrigação, ou (ii) que eventual dano teria ocorrido mesmo que a prestação
tivesse sido cumprida pontualmente.
6. Resolução de demandas
Diversas autoridades estão orientando que, caso haja
dificuldade na resolução de problemas com fornecedores, que procurem canais
oficiais e adequados para registro de manifestações e denúncias, como a
plataforma pública do consumidor.gov.br,
além de PROCONs. A recomendação é de que o poder judiciário seja utilizado
apenas em último caso e como última alternativa.
De fato, o número de demandas registradas pelos consumidores oriundas apenas do COVID-19 é expressivo. De acordo com a notícia publicada pelo PROCON/SP, até 18 de março haviam sido registrados 3.411 atendimentos sobre problemas relacionados a Covid-19 (por exemplo, cancelamentos de viagens e eventos, além de denúncia de abusividade de preços e ausência de produtos), dos quais 2.208 foram reclamações e 1.203 consultas. Das 2.208 reclamações registradas, 1.162 foram contra agências de viagens e 862 contra companhias aéreas. Os consumidores também reclamaram de cruzeiros (46 casos), programas de fidelidade (55 queixas) e de problemas com ingressos e eventos (40 queixas).
Apenas para fins de comparação, de acordo com os números divulgados pelo PROCON/SP em relação a reclamações registradas durante o período de Black Friday em 2019, foram realizadas 394 reclamações e 349 consultas, totalizando 743 atendimentos. Isso significa que foram feitas quase cinco vezes mais reclamações relacionadas a Covid-19 até o momento perante o PROCON/SP do que na totalidade do período de Black Friday de 2019.
7. Boas práticas
É necessário também ressaltar que, além da realização de cancelamentos e reagendamentos de serviços por diversos atuantes do setor privado estão adotando boas práticas diante do cenário causado pela Covid-19. Pautados pelo princípio da boa-fé, algumas medidas foram adotadas para preservar o bom relacionamento entre fornecedores e consumidores, visando a manutenção dos relacionamentos e o oferecimento de “comodidades” aos consumidores.
Alguns dos exemplos são os seguintes:
a.
Plataforma de marketplace retirou a
taxa de comissão de produtos de “primeira necessidade”;
b.
Diversas indústrias têm utilizado as unidades fabris para fabricar álcool em
gel, que será distribuído para hospitais públicos municipais em diversas
cidades do Brasil;
c. Operadoras
de TV liberaram o sinal de televisão a cabo para consumidores em isolamento
social;
d. Diversos
bancos privados prorrogarão por 60 (sessenta) dias os vencimentos de dívidas de
clientes pessoas físicas e micro/pequenas empresas.
8. Campanhas de Recall
Em razão da Covid-19, tem-se discutido os desafios no caso de campanhas de chamamento (“recalls“) em andamento ou que se façam necessárias durante o período de quarentena para recolhimento de produtos com defeito.
Assim
como a maioria dos atendimentos e execuções de serviços do setor privado, é
possível que empresas venham a suspender os atendimentos de consumidores.
De
qualquer maneira, antes de adotar qualquer medida, é recomendável que os
fornecedores alinhem com a SENACON a estratégia que será adotada em cada caso
especificamente nesse momento de crise, que tem se apresentado como um órgão
disponível para realizar reuniões à distância (por telefone ou
videoconferência) para discussão de casos no geral.
Inclusive,
de acordo com a Ordem de Serviço nº 02/2020, a SENACON determinou que,
ressalvadas as notificações iniciais em averiguações preliminares e em
processos administrativos sancionadores, as intimações serão feitas, em regra,
por publicação do ato no Diário Oficial da União e que, desde que faticamente
possível, é facultado aos interessados requerem a realização de intimações via Whatsapp. Nesse último caso, o
fornecedor precisará assumir o compromisso expresso de que será presumida a
ocorrência da intimação no dia útil seguinte ao seu envio ao número por ele
fornecido, independente de confirmação de leitura ou de recebimento.
9. Prazos e Funcionamento dos órgãos
Até
o momento, os seguintes órgãos se manifestaram a respeito:
a. PROCON/SP: os prazos processuais foram suspensos por 15 (quinze) dias, a partir de 18/03/2020, em relação a processos sancionatórios e reclamações fundamentadas (exceto casos relacionados a Covid-19). A Portaria ainda aponta que a suspensão não se aplica aos boletos emitidos, sendo vedada a emissão de novos boletos durante esse período.
b. PROCON/AL:
Em 18 de março, o PROCON Estadual de Alagoas determinou a suspensão de
audiências de conciliação pelo prazo de 15 (quinze) dias. Não há posicionamento
sobre os prazos processuais em andamento.
c. PROCON/RJ:
Por meio de nota, o órgão suspendeu por 30 dias, a partir de 16 de março,
audiências de conciliação ou mediação, atos processuais, salvo aqueles
urgentes, assim determinado pelas autoridades competentes e também atendimento
presencial.
d.
PROCON/MG: Em 16 de março, o órgão comunicou ao público a suspensão do
atendimento presencial por prazo indeterminado. Não há manifestação sobre os
prazos processuais em andamento.
e. PROCON/RS:
O órgão gaúcho suspendeu desde o dia 18 de março os atendimentos presenciais
por prazo indeterminado, não fazendo qualquer referência aos prazos processuais.
f. PROCON/PR:
De acordo com a Orientação Administrativa nº 01/2020, houve a suspensão de
prazos recursais e de defesa, de agendamento de audiências e junto à Central de
Resolução de Conflitos. O atendimento presencial aos consumidores e
fornecedores também foi suspenso por prazo indeterminado.
g. PROCON/PE:
A Portaria SJDH nº 21/2020 determinou a suspensão dos prazos processuais e
audiências até 31/03, com exceção de Cartas de Iinvestigação Preliminar
(“CIP”) e vencimento de guias de pagamento de multas. Os termos
finais e iniciais de contagem
de prazos processuais
entre os dias
18 de março
de 2020 e
31 de março de
2020 ficarão prorrogados
para o primeiro
dia útil imediatamente posterior ao
dia 31 de
março de 2020. Os atendimentos estão sendo feitos em
regime de plantão.
h. SENACON:
A SENACON, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, não
está mais realizando atendimento pessoal ou telefônico ao público, tendo em
vista a Portaria do Ministério da Justiça que autorizou o regime de teletrabalho.
Ainda é possível enviar e-mails para o órgão por meio de seu endereço
eletrônico e o sistema online da ouvidoria continua ativo.
Até
a presente data os prazos processuais de processos administrativos da SENACON
não foram suspensos.
Os dados mencionados estão sujeitos a alterações conforme novos desdobramentos decorrentes da pandemia da Covid-19. Estamos monitorando o assunto diariamente para a devida atualização. Nosso time de Consumidor Estratégico está à disposição para sanar quaisquer dúvidas.
10. Projetos de lei
Sob o ponto de vista de relações de consumo, o PL prevê que as normas de proteção e defesa do consumidor não se aplicarão às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.
O PL também estabelece que ficará suspensa até 30 de outubro de 2020 a aplicação do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor – que trata do direito de arrependimento -, em casos de produtos e serviços adquiridos por entrega domiciliar (delivery).
[1] Lei Federal nº 8.078/1990.
[2] “Art. 6º São direitos básicos
do consumidor: […] III – a informação adequada e
clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de
quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e
preço, bem como sobre os riscos que apresentem“.
[3] Nota Técnica Interministerial n.º 2/2020/GAB-SENACON/SENACON/MJ, assinada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Economia, Ministério do Turismo e Ministério da Sáude oferecendo orientações gerais sobre o impacto do coronavírus (Covid-19) nas relações consumeristas, especialmente no setor de transporte aéreo.
[4] Nota Técnica n.º 8/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ.